domingo, 29 de julho de 2012

RELIGIÕES E INQUISIÇÕES

Numa época em que o ateísmo militante matou quase duas centenas de milhões de pessoas e criou os mais temíveis mecanismos de repressão já conhecidos , as advertências de certos vigilantes da democracia contra o perigo das inquisições religiosas soam tão comicamente desproporcionais, que não se pode deixar de ver nelas um simples mecanismo de fuga. Por meio desse artifício, o inimigo das religiões tenta salvar de um confronto com a realidade o mais querido mito moderno: o mito de que a cultura científico-materialista pode criar um mundo de liberdade e democracia.

Se as religiões, uma vez perdido o seu impulso originário, podem cristalizar-se em burocracias tirânicas e até homicidas, isso prova que a violência repressiva não está na raiz e essência do fenômeno religioso, mas sim na sua lenta e progressiva contaminação por elementos estranhos – políticos, sociais, culturais e econômicos. A repressão religiosa só aparece quando decorridos muitos séculos da revelação inicial, e vem junto com a proliferação das controvérsias teológicas que assinalam a dissolução da unidade espiritual do povo crente.

Nos seus primeiros tempos, as religiões em geral mostram um notável espírito de mansuetude e tolerância. Os judeus do Antigo Testamento só partiram para as guerras depois de suportar docemente toda sorte de ofensas. Os cristãos só começaram a reagir pela força depois de três séculos de sofrimento resignado. Maomé ao entrar triunfante em Medina deu anistia geral aos adversários que haviam tramado sua morte. As manifestações de fanatismo e intolerância foram tardias nos três casos e entremeadas de retornos a bondade originária.

As ideologias modernas, ao contrário, nasceram bebendo sangue, com uma sede ilimitada que nem se inibe na derrota, nem se aplaca na vitória. São homicidas desde o berço. Não há uma só delas – nem o democratismo iluminista, nem o socialismo, nem o nacionalismo, nem o anarquismo – que não tenha surgido como proposta explicita de transformação violenta, que não tenha dado seus primeiros passos sobre os cadáveres de seus adversários e que uma vez no poder, não tenha progredido praticamente sem limites, no uso de meios cruéis para derrubar os obstáculos que se apresentem no caminho de uma paz sempre adiada, de um paraíso de ordem e justiça que vai se esfumando no horizonte, de século em século.

Mais ainda: desde o inicio, essa violência, de escala milhares de vezes maior do que tudo quanto se possa imputar a qualquer religião conhecida e a todas elas somadas, se volta no essencial, contra povos e comunidades crentes. Contra os católicos na França, no México e na Espanha. Contra os ortodoxos na Rússia e paises satélites. Contra os judeus na Alemanha e paises sob ocupação alemã. Contra os budistas na China e no Tibete. Total de vitimas: o equivalente a população do Brasil. E tudo isto em nome de doutrinas puramente agnósticas ou atéias: o laicismo, a interpretação materialista da história, a competição darwinista das raças. A história da modernidade não é só a narrativa de um processo de ‘laicização’crescente – tantas vezes assim denominado para dar a impressão de que tudo não passou de um inofensivo debate acadêmico no qual o lado mais inteligente levou a melhor. A história da modernidade não é isso: é a história da matança sistemática e ininterrupta dos crentes pelos descrentes. Foi matando os homens de Deus e não argumentando com eles, que a modernidade atéia pôde triunfar e hoje impor ao mundo a mentira sórdida de que as religiões são um perigo para a democracia e a paz.

Tão fundo essa mentira penetrou na mente contemporânea, que mesmo homens que se imaginam mais avessos às ideologias totalitárias, quando vão denunciá-las em público, não falam delas senão no vocabulário que elas mesmas forjaram para caluniar as religiões. Quando com pose de esclarecido e tolerante, o democrata moderno expressa sua repulsa pelas tiranias do século XX referindo-se a elas com expressões como “inquisição”, “intolerância rabínica” ou “fundamentalismo”, o que ele faz é , em última análise, misturar numa pasta de sombras a imagem das vitimas e a dos assassinos, insinuando que estes só são verdadeiramente assassinos porque em algo se parecem com aquelas. Nessa linha, o ateu não mata porque é ateu, porque é inimigo professo de Deus, porque tem ódio aos crentes: mata porque se deixou contaminar de “espirito inquisitorial”, de “fé irracional”, de “fanatismo puritano”. Mata porque ainda carrega em si algum residuo das antigas religiões. Mata porque ainda não alcançou a perfeição do puro materialismo cientifico. Quando o último rabino for enforcado nas tripas do último bispo e enterrado sob os ossos do último aiatolá, a violência terá desaparecido do mundo.

É assim que, no ato mesmo de confessar seus crimes, a astúcia materialista acaba por imputá-los às suas vitimas.

Na verdade, só quem não faz a menor idéia do que seja uma religião – ou quem fazendo uma idéia bem clara, tenha motivos para obscurece-la – pode supor que haja uma conexão intrinseca entre religião e fanatismo totalitário de um lado,e entre materialismo e tolerância democrática de outro.

A aposta fanática que o militante faz numa ideologia cientifica é, pela própria natureza das coisas , infinitamente maior que aquela que qualquer religião poderia admitir numa alma de crente. Nenhum profeta, santo ou mistico jamais esteve tão persuadido de conhecer as intensões divinas quanto os ilumunistas , marxistas e racistas imaginavam ter penetrado as leis secretas da natureza e da história. (Uns sabiam muito e se julgavam pouco sábios; outros pouco sabiam e achavam que sabiam tudo). Em religião, as revelações vêm sempre numa linguagem demasiado compacta, demasiado densa de subintenções simbólicas, para que seu conteúdo doutrinal possa saltar aos olhos a primeira vista. O esclarecimento, a explicação doutrinal leva séculos – e a margem de incerteza nas interpretações tem de permanecer ampla pelo menos até que se perfilem, ao fim de um longo trabalho, os pontos de controvérsia irredutíveis, que então sim, podem se cristalizar em antagonismos políticos e inaugurar a era das inquisições. Com as ideologias cientifico-politicas não há essa delonga: mal acabam de ser formuladas, já podem conquistar a adesão consensual de massas de intelectuais e militantes, fortalecidas, ademais pela convicção de que não agem por fé irracional, mas por uma fatalidade natural ou histórica legitimada pela ciência. Por isto as religiões quando velhas podem até se tornar assassinas. Mas as ideologias materialistas já nascem matando e nunca param de matar.
Olavo de Carvalho, filósofo

Nenhum comentário:

Postar um comentário