sábado, 30 de setembro de 2017

Orientações e cuidados da Igreja em relação a veneração das Imagens de santos


As imagens são lícitas, mas podem acarretar o perigo de exageros e abusos na piedade católica. Consequentemente as autoridades da Igreja sempre cuidaram do assunto. Deste modo, os tipos de imagens utilizados no culto cristão nunca poderão ser inspirados unicamente pela estética ou pela devoção popular fantasiosa.
O Papa Urbano VIII em 1629 condenou a representação da Santíssima Trindade sob a forma de um tronco humano com três cabeças, por se tratar de uma aberração. Em 1745, Bento XIV rejeitou a cena de três pessoas sentadas uma ao lado da outra para representar a Trindade Santa. Uma das principais razões dessas reprovações é que o Espírito Santo nunca apareceu sob a forma humana.
A Igreja quer que a arte cristã, com a finalidade de representar as Pessoas Divinas, só reproduza elementos mediante os quais estas aparecem na História sagrada ou nas Escrituras: ao Filho será representado como figura humana; ao Espírito Santo só convém os símbolos da pomba (Mt 3,16) ou línguas de fogo (cf. At 2,3). Quanto ao Pai Eterno, este é representado por um dedo ou uma mão, sinais de ação e poder citados pelo evangelista Lucas: “Se é pelo dedo de Deus que expulso os demônios”(cf. 11,20). Ou pelo modelo de um ancião, inspirado na profecia de Daniel 7,9, que vê o Filho do homem adiantando-se em direção de venerável e antigo varão de cabeleira branca, sentado sobre um trono.
De modo especial, tendo em vista a catequese, os bispos franceses promulgaram algumas diretrizes que devem orientar a confecção de imagens para crianças. Eis a conclusão final:
São desejáveis:
a) As imagens que eduquem a fé, isto é, que façam pensar nas realidades sobrenaturais e despertem autênticos sentimentos de fé e de piedade;
b) As imagens que levem em conta as reações da criança, e não a do adulto;
c) As imagens que sejam concebidas dentro de certa preocupação com a estética e não sejam feudo de alguma escola particular;
d) As imagens que não apresentem pormenores inúteis aptos a desviar do essencial a atenção das crianças;
e) As imagens que utilizem cor e movimentação, a fim de melhor prender a atenção e o interesse das crianças; todavia, sem exageros.
São desaconselhadas:
a) As imagens que tratem o Invisível com os mesmos traços concretos das realidades visíveis; assim os anjos configurados, sem mais, a seres humanos;
b) As imagens que sejam capazes de impressionar e agradar, mas não suscitem sentimentos de fé e de piedade; por exemplo, aquelas que apresentam os personagens sagrados com semblante de boneca ou com expressionismo humano carregado demais, como são as imagens da Virgem Santíssima em geral e as de São João Evangelista, na Última Ceia, produzidas por certos artistas do Renascimento do século XVI;
c) As imagens que as crianças não possam facilmente compreender, por serem demasiado abstratas.

São condenadas:
a) As imagens que transmitam falsa noção da realidade, como por exemplo, a do Menino Jesus pregado à Cruz ou detido no tabernáculo do altar, ou imagens muito sentimentais;
b) As imagens que contribuam, na mente das pessoas simples, para ridicularizar algum personagem sagrado, algum mistério da fé ou os ritos da Liturgia (Cf. La Documentation Catholique 15 de Setembro de 1957).
Estas normas, sábias e prudentes, devem ser observadas, já que as imagens devem servir de correta instrução ao povo de Deus, e, portanto, devem ser confeccionadas de acordo com a mensagem que devem transmitir. O culto de veneração relativo às imagens foi sendo aos poucos integrado no patrimônio da vida da Igreja com o seu fundamento no mistério da Encarnação do Filho de Deus, que viu a utilidade das representações sensíveis para o auxílio da catequese e o estímulo da oração.
Não seria cristão recusar a arte na medida em que ela pode ser via de acesso a Deus. Por conseguinte, a Igreja proclama: nem o iconoclasmo nem o culto supersticioso e mágico das imagens. Cada cristão pode pessoalmente fazer o uso das imagens que melhor corresponda às suas devoções pessoais: uns são ajudados pelas imagens, outros as dispensam.
O importante é que as imagens sejam usadas como um meio, não um fim. Mas ninguém deve negar a legitimidade do seu uso moderado e teologicamente fundamentado.
Cabe aqui uma reflexão:
A Igreja Católica é a única Igreja que possui ligação direta com os Apóstolos; é a única que possui a sucessão apostólica.
Cristo a incumbiu de ser responsável pela guarda do “depósito da fé”, em especial das Sagradas Escrituras. Se a Igreja quisesse agir contra a Palavra de Deus, adulteraria a Bíblia nas passagens que condenam as imagens, a fim de justificar o seu uso.
O livro da Sabedoria – não reconhecido como inspirado pelos protestantes – condena, como nenhum outro livro do Antigo Testamento, a idolatria (cf. Sb 13-15). Não seria, então, mais fácil para a Igreja católica, fazer como os protestantes e repudiar o citado livro? No entanto, a Igreja não fez isso porque a Bíblia deve ser lida dentro de seu contexto e de forma correta, pois a Igreja entendeu que todos esses textos nunca proibiram o uso das imagens, mas apenas as imagens de ídolos.
Logo, o que a Bíblia condena é a idolatria, a substituição de Deus por uma criatura, isto é, o uso negativo da imagem que faz as pessoas terem uma ideia errônea sobre Deus. Se o seu uso for positivo, aproximando as pessoas do verdadeiro Deus, então seu uso é justificado e permitido. A imagem simplesmente ajuda a criar um clima favorável à oração e é um meio eficaz de evangelizar, principalmente os pobres e iletrados.
São Paulo ensina a necessidade de recordar com especial estima os nossos precursores na fé. Eles não desapareceram, mas a nossa fé nos dá a certeza do céu onde os que morreram na fé estão já vitoriosos em Cristo. A Igreja respeita as imagens da mesma forma que se respeita e venera a fotografia de um ente querido. Todos sabemos que não é a mesma coisa contemplar a fotografia e contemplar a própria pessoa de carne e osso. Não está a Tradição Católica contra a Bíblia. A Igreja mantém-se fiel a autêntica interpretação cristã desde as suas origens.
Este texto está apoiado no artigo de D.Estêvão Bettencourt, osb, publicado em sua revista Pergunte e Responderemos (nº 270, Ano: 1983, p. 412) sob o título É lícito o uso de imagens sagradas?
Por ocasião do XII centenário do II Concílio de Niceia (787), em 4 de dezembro de 1987, o Papa João Paulo II escreveu o documento Duodecim Saeculum sobre a Veneração da Imagens, que também pode ser encontrado facilmente caso deseje se aprofundar neste assunto.
Retirado do livro: Por que os católicos veneram imagens? Coleção Formação Católica. Prof. Felipe Aquino. Editora Cléofas, 2017.




sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A importância dos avós

Uma criança que respeita os avós certamente será mais consciente do seu papel como cidadão
A formação dos filhos acontece pela interação deles com a família e a sociedade. Quantas lembranças boas temos da relação com nossos avós! As viagens para a casa deles, a comidinha gostosa, o carinho, o olhar, as histórias. Enfim, a riqueza do relacionamento com eles é significativa na vida de uma criança.

 A relação entre pais e avós
A relação entre pais e avós é, dentro do possível, bastante salutar. No entanto, as regras e os limitespara a criança devem ser combinados entre eles, caso sejam os avós quem cuidarão dos netos. Assim, a educação das crianças terá regras parecidas e não haverá desentendimentos.
Quando existe uma relação conflituosa dos pais com os avós, é importante que ela seja resolvida entre eles, mas nunca com a participação da criança. Mesmo que sua visão a respeito dos avós seja comprometida, evite um posicionamento que dê essa impressão para seus filhos.
Cada família tem sua configuração, seus conflitos e entendimentos particulares. Assim, cabe a cada família avaliar quando e como seus filhos estarão com os avós. Só não vale usá-los como “cuidadores de luxo”, atendendo às necessidades dos pais e nada mais.
As raízes familiares são transmitidas também pelos avós, e isto é bastante válido. Todo contato é importante e também enriquece a vida deles, que já se encontram em outro momento de vida e se “revitalizam” com seus netos.
Nesta convivência, outro ponto muito importante é ensinar à criança o valor da pessoa mais velha. Num mundo “descartável”, no qual o velho é facilmente deixado de lado ou ridicularizado, é extremamente válido que possamos dar à criança o sentido de valor dos mais idosos, bem como o respeito que deve ser dado a eles.
  Uma criança que respeita a história, o passado e as tradições, certamente, será mais consciente do seu papel como cidadão
 
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A relação entre netos e avós
A troca de afetos é muito válida, porque prepara os filhos pequenos para o contato com outras pessoas no mundo. A vinda de novos netos sempre é uma comemoração e dá aos idosos o sentimento de continuação e perpetuação da família. Dá a eles o sentido de que suas histórias serão multiplicadas para outros membros da família, fato extremamente enriquecedor.
Acredito ser bastante importante que também os pais possam rever sua percepção sobre as pessoas mais velhas e sobre o relacionamento que têm com elas. A partir dos exemplos dos pais, a criança terá, de forma melhor ou pior, sua relação com os avós ou com qualquer pessoa mais velha.
A grande lição dessa experiência é que os netos são de fundamental importância na vida dos avós e que o relacionamento entre eles é extremamente importante para os adultos que estão envelhecendo e para as crianças que estão amadurecendo.
Elaine Ribeiro dos Santos

Elaine Ribeiro, Psicóloga Clínica e Organizacional, colaboradora da Comunidade Canção Nova.
 



sábado, 16 de setembro de 2017

Semear o bem


Certa feita, Jesus saiu de casa, onde se encontrava, em Cafarnaum, entrou numa barca, sentou-se para contar suas parábolas. Pode-se imaginar a beleza da paisagem! Nas margens do mesmo Lago, que chamavam de Mar da Galileia, havia chamado seus primeiros discípulos. Do outro lado, pode-se ver a terra dos pagãos. Água, multidão, terra, vizinhança dos pagãos, tudo contribui para que o tema do Reino de Deus seja anunciado, abrindo os horizontes aos seus discípulos de então e os que viriam, no correr dos séculos, entre os quais estamos nós. Podemos, então, encontrar o nosso lugar no meio da multidão, para escutar uma das mais belas parábolas do Evangelho, a história do Semeador. E, se somos discípulos, podemos apostar nas explicações dadas pelo Mestre, aplicando-as à nossa vida, sem deixar cair pela estrada nenhuma de suaspalavras!
“Vós, portanto, ouvi o significado da parábola do semeador. A todo aquele que ouve a palavra do Reino e não a compreende, vem o Maligno e rouba o que foi semeado em seu coração; esse é o grão que foi semeado à beira do caminho.  O que foi semeado nas pedras é quem ouve a palavra e logo a recebe com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, é de momento: quando chega tribulação ou perseguição por causa da palavra, ele desiste logo. O que foi semeado no meio dos espinhos é quem ouve a palavra, mas as preocupações do mundo e a ilusão da riqueza sufocam a palavra, e ele fica sem fruto. O que foi semeado em terra boa é quem ouve a palavra e a entende; este produz fruto: um cem, outro sessenta e outro trinta” (Mt 13,18-23).
Ouvir, compreender e produzir fruto! Os primeiros escutam a Palavra e não a compreendem. Um segundo grupo ouviu com alegria, mas faltam raízes, de modo que, pelas dificuldades da vida e as perseguições, acabam desistindo. As preocupações do mundo e a ilusão da riqueza também podem impedir os frutos. Enfim, ouvir, compreender e produzir fruto é o grande desafio para o crescimento do Reino deDeus.
Jesus saiu de casa para as margens do lago. Sua cátedra é um barco, sua linguagem recolhe a simplicidade dos acontecimentos. Ele mesmo é o Semeador que sai pelo mundo a espalhar a boa semente do Reino de Deus. A nós foram oferecidas duas posições diante da parábola do Semeador: de um lado, somos estrada, terreno, caminho, espinhos, preocupações, terra boa. À nossa liberdade Deus entrega a grande responsabilidade de reagir de forma coerente. Por outra parte, como os discípulos da primeira hora, também a nós cabe “sair”, como o Senhor que sai de casa ou o Semeador que sai a espalhar suas sementes. Não nos é possível ficar acomodados, pensando que tudo já está feito e as estruturas do Reino de Deus e de sua Igreja são estáveis e prontas para todos os desafios. A parábola, se bem entendida, tem o condão para desacomodar todos os cristãos. Alguns passos emergem da luz da Parábola do Semeador!
Diante de todas as dificuldades, chamem-se elas pedras, preocupações do mundo, ilusão da riqueza, superficialidade, o primeiro apelo da parábola é acreditar na qualidade da semente lançada por Deus. Fora do amor e da bondade, Deus é absolutamente incapaz! Sim, Ele só sabe fazer o bem, só pode plantar boas coisas em nós a no mundo. Deus é bom, belo e verdadeiro! Não somos seus proprietários, mas filhos e filhas, tendo à disposição toda uma reserva do bem infinito, da qual podemos beber água pura!
Os discípulos de hoje podem e devem fazer perguntas ao Senhor! Ele não foge das inquietações que tomam conta de nosso coração. E sua Igreja, cuja vocação é anunciar a verdade inteira, deve estar pronta para o diálogo com tudo o que o próprio Espírito Santo suscita no coração dos seguidores de Jesus Cristo e na busca da verdade, presente em todos os coraçõeshumanos.
Se a boa semente é semeada, é óbvio perguntar-nos a respeito do acolhimento da Palavra semeada. É hora de corrigir com prontidão a inconstância diante das dificuldades, a negligência, a preguiça, as preocupações cotidianas e a ansiedade que nos tira apaz.
Depois, a Igreja e cada cristão hão de se colocar diante do empenho da evangelização. Trata-se de saber comunicar de maneira nova e eficaz, com todos os meios lícitos e dignos, na linguagem adequada, com franqueza, coerência decorrente do testemunho autêntico. Precisamos de evangelizadores confiáveis e incansáveis, que não se deixem vencer pelos obstáculos. O Evangelho se espalhou primeiro num mundo pagão, e a Boa Nova se fez presente e atuante. O nosso mundo, eivado de relativismo e indiferentismo, pode ser vencido pela força do Senhor Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado, que envia sempre o seu Espírito Santo, para que tenhamos no coração o mesmo ardor dos primeiros discípulos e a coragem dos santos e dosmártires.
Entretanto, há um trabalho artesanal a ser assumido por todos os cristãos e cada um, feito de testemunho, presença, coragem. Trata-se de semear o bem, onde quer que estejamos. Dizer um bom dia com sinceridade, agradecer, sorrir para as pessoas, colocar em relevo o bem que as pessoas fazem, elogiar, saber corrigir com delicadeza e por causa de Deus.
Vale ainda observar que a avalanche de pessimismo reinante, quando não vemos uma luz no fundo do túnel de nossa realidade social e política, começar a recolher os “caquinhos” dos atos de amor e disposição para o serviço existentes em torno a nós, para colocar à disposição de Deus, que pode, e só Ele, construir um mosaico, uma verdadeira obra de arte, com tudo o que lhe oferecemos.
Rezemos com a Igreja: Ó Deus, que mostrais a luz da verdade aos que erram, para retomarem o bom caminho, dai a todos os que professam a fé rejeitar o que não convém ao cristão, e abraçar tudo que é digno deste nome!
 Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL





sexta-feira, 8 de setembro de 2017

A amizade no ministério de música


Os vínculos devem existir dentro do ministério de música
Fazer parte de um ministério de música é estar junto com os outros, é encontrar nele o ombro parceiro na caminhada, é dividir para multiplicar, mas é também experimentar a tensão das muitas diferenças. Fazer parte de um grupo, equipe ou ministério de música é um exercício de comunidade.
Aristóteles fala de diferentes tipos de amizade. A primeira é a amizade por afinidade. Gostamos das mesmas coisas e sentimos prazer em fazer coisas em comum. É a alegria do ministério de música que vibra ao tocar na Missa, no grupo de oração ou pastoral. O ministério também experimenta a felicidade do convívio daquela pizza ou cinema. O convívio é muito prazeroso.


Às vezes, os vínculos formados são afetivamente tão fortes, que duram muito mais do que o serviço ministerial que deu origem à aproximação. Existe, porém, outro tipo de amizade segundo Aristóteles: amizade por objetivo. Somos diferentes, mas temos objetivos comuns e sabemos que os realizamos bem quando unimos nossas forças e talentos. Nesse tipo de amizade, quando cessa o objetivo, cessa o convívio.
Existe, no entanto, um tipo mais perfeito de amizade, uma que é desinteressada, não instrumentalizada, uma amizade que deseja o bem do outro, não por reconhecer afinidades comuns nem por necessitar dele em alguma atividade, mas queremos seu bem só por virtude mesmo, pela sua felicidade. Desapegadamente.
Fazer parte de um ministério de música é entender, como os apóstolos entenderam, que somos todos muito diferentes e a diferença não nos separa; ao contrário, ela nos aproxima, como peças de um quebra-cabeça – incompletas e imperfeitas enquanto sozinhas –, que, no encontro com outras peças, imperfeitas e incompletas, encontra sua razão de ser no todo: perfeito e revelado.
Augusto Cezar
Músico da banda DOM, compositor, escritor de 3 livros, professor e palestrante.

  



sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A Queda dos muros de Jericó


(Js 6, 1-20)
Logo após a travessia do Jordão, os filhos de Israel defrontaram-se com a cidade de Jericó, habitada por cananeus hostis. Tiveram de se dispor ao assalto do reduto inimigo, obtendo por fim estrondosa vitória.
O texto bíblico referente ao episódio (Js 6, 1-20) parece ter sofrido glossas no decorrer dos tempos, prestando-se atualmente a diversos ensaios de reconstituição e interpretação; ademais as recensões hebraica e grega apresentam pequenas divergências entre si. Eis, porém, em grandes linhas, o que se verificou:
Havendo os filhos de Israel acampado diante de Jericó, os habitantes da cidade, confiantes no poder de suas muralhas, fecharam-se no interior destas, esperando que a penúria ou alguma inclemência da natureza obrigasse os invasores a retroceder. Foi então que, a mandado do Senhor, os guerreiros hebreus, junto com os sacerdotes, que levavam a arca de Javé, por seis dias consecutivo deram processionalmente a volta da cidade (a qual não devia ter perímetro muito longo, para poder ser bem defendida); os desfiles se fizeram ao som das trombetas dos sacerdotes. No sétimo dia, efetuaram sete circuitos, após os quais ressoaram as trombetas; a estas os quarenta mil filhos de Israel (cf. Js 4, 13) responderam imediatamente com brado poderosíssimo; em consequência, as muralhas de Jericó desmoronaram e os assaltantes puderam penetrar na cidade.
Não há dúvida, trata-se aqui de um feito maravilhoso, que só se verificou por intervenção extraordinária de Deus. É o que a Sagrada Escritura explicitamente recorda num dos livros posteriores do Antigo Testamento:
“O soberano Senhor do mundo, sem catapulta e sem máquinas de guerra, derrubou os muros de Jericó nos tempos de Josué”. (2Mc 12, 15)

Contudo não pode deixar de chamar a atenção o artifício prescrito pelo Senhor. Precisava o Todo-Poderoso de que os israelitas fizessem o circuito da cidade para que Ele desmantelasse as fortificações? Que relação há entre as procissões, com seus toques de trombeta, e o desmoronamento subsequente?
Pressupondo que eram um estratagema bélico, os exegetas têm procurado estabelecer um nexo entre esses desfiles e a vitória final. Assim:
1. Alguns apelam para o testemunho de cronistas da antiguidade, os quais referem que tropas assaltantes, em um ou outro caso, fizeram repetidos circuitos da cidade ou do acampamento sitiados, com o fim de ludibriar o inimigo. Eis, por exemplo, o que narra Sexto Júlio Frontino, autor da obra Stratagemata (catálogo de estratagemas) sob o Imperador Domiciano (81-96):
“Domício Calvino cercava na Ligúria a cidade de Luna, localidade defendida tanto por sua posição geográfica como por obras de fortificação. Muito frequentemente mandava que todas as suas tropas desfilassem ao redor da mesma, reconduzindo-as, a seguir, ao acampamento. Esta tática incutiu aos habitantes a convicção de que os romanos não queriam senão exercitar-se; visto então que negligenciavam o serviço de vigilância. Domício transformou essa espécie de passeata em ataque repentino. A cidade foi tomada, e os moradores se renderam”.
Merece atenção o fato de que o autor refere este estratagema sob o título “De fallendis his Qui obsidebuntur. Como se procede para enganar os que são sitiados”.
Baseando-se neste testemunho, julga o Pe. Abel O. P., professor da Escola Bíblica de Jerusalém, que Josué recorreu a tática semelhante com a intenção de fazer crer aos habitantes de Jericó que os seus planos eram pacíficos e não visavam um ataque à cidade (em tempo de guerra justa, torna-se lícito o recurso não somente a manobras cruentas, mas também às que enganam e desnorteiam o adversário). É de notar, porém, que o ilustre exegeta, para construir a sua hipótese, é obrigado a afirmar que as “passeatas” dos israelitas se realizavam em absoluto silêncio; nem toque de trombeta nem clamor de guerra emanava de Israel, de sorte a não provocar suspeita ou alarma na cidade de Jericó. E, a fim de inferir este traço da narrativa bíblica, Abel, apelando para critérios filológicos, distingue dois documentos, fontes do texto atual de Js 6, documentos dos quais o primeiro, o “fundamental”, lhe parece narrar unicamente desfiles silenciosos !19
A sentença do Pe. Abel não deixa de ter autoridade. Contudo baseia-se num postulado que não pode ser estabelecido com segurança. É o que a torna discutível.
2. Há quem, apelando igualmente para a mentalidade e a praxe dos antigos, explique de outra maneira o valor bélico dos circuitos praticados pelos filhos de Israel. Em vez de tranquilizar os habitantes de Jericó, teriam tido por fim aterrorizá-los!… A ostentação da arca (quase “estandarte” da teocracia israelita) acompanhada pelos sacerdotes e os guerreiros, o toque das trombetas, o brado final deviam ser ritos aptos a impressionar os “supersticiosos” moradores de Jericó. Estes admitiam, sim, a existência de um Deus próprio dos israelitas, protetor poderoso desta gente; haviam ouvido falar dos prodígios realizados por Javé em prol dos hebreus na saída do Egito, na travessia do Mar Vermelho e no deserto; isto tudo os fazia temer (cf. Js 2, 8-11). Sobre este fundo, os desfiles dos israelitas podiam-lhes parecer equivalentes a uma tomada de posse do terreno em nome do Deus Forte de Israel; o número setenário (dos desfiles, dos dias de cerco), sendo símbolo de totalidade, devia insinuar a esses homens a ruína total que o pujante Senhor lhes destinava, condenando-os ao anátema. É preciso não esquecer que, para os antigos, a guerra era ação religiosa; junto com os povos que se defrontavam, julgavam que os respectivos deuses pugnavam entre si;20 ora no caso parecia que o Deus de Israel se anunciava mais forte que os deuses de Jericó, como se mostrara mais poderoso que os dos egípcios e de outras nações.
Assim os desfiles em torno de Jericó teriam desempenhado o papel de causar pessimismo psicológico e religioso aos assediados: quando no fim dos sete dias de estratagema, explorando este estado de alma, Josué soltou o brado de avanço, já não terá encontrado grande resistência por parte dos defensores da cidade.
Esta sentença não pode ser comprovada de maneira decisiva, como também nada de sério se lhe poderia objetar.
Caso se admita uma das duas hipóteses acima propostas, ainda fica margem para a pergunta: como se deu o assalto à cidade após a preparação psicológica dos sete dias?
Sem poder reconstituir o quadro com precisão, dada a escassez de dados, os exegetas por vezes sugerem um ou outro particular que a narrativa lhes parece oferecer:
a) os espiões que, antes do cerco da cidade, estiveram em Jericó (cf. Js 2) concluíram um pacto com a meretriz Rahab, cuja casa estava situada na periferia da cidade (cf. 2, 15). Esta mulher, crendo que realmente Javé havia de entregar Jericó aos hebreus, decidira salvar-se com os seus familiares, atraiçoando os concidadãos; terá, pois, prometido dar ingresso aos invasores pela sua casa, logo que se propusessem empreender o assalto… Para apoiar a tese, os estudiosos fazem notar a precisão de topografia e de sinais, a recomendação de silêncio, no diálogo travado entre Rahab e os exploradores (cf. 2, l5-2O); 21
b) pode-se interpretar em sentido figurado o termo hebraico homah, geralmente traduzido por “muralha”. É, sim, com valor metafórico que ele ocorre, por exemplo, em 1 Sm 25, 16. 22 Significaria então a guarnição militar, os homens que montavam a guarda às portas de Jericó. Estes, e não as muralhas, teriam caído… isto é, desfalecido de terror após o estratagema de Josué; teriam capitulado, permitindo o ingresso na cidade sem desferir algum golpe. Entrando em Jericó, os invasores lhe teriam ateado fogo, poupando apenas a casa de Rahab, posta no perímetro das muralhas; 23
c) o toque diário de trombetas teria sido um artifício para prender a atenção dos habitantes de Jericó, enquanto operários israelitas cavavam galerias debaixo das muralhas de Jericó; uma vez terminados os trabalhos, o brado mais forte teria sido sinal para que pusessem fogo à armação de madeira que sustentava os muros e se retirassem; o pânico teria então irrompido em Jericó. Aproveitando-se da situação confusa e das ruínas causadas pelo incêndio, os filhos de Israel teriam conseguido penetrar na cidade. 24
3. Estas diversas conjecturas formuladas para explicar os desfiles dos israelitas como estratagema bélico, embora muito eruditas, não possuem senão o valor de suposições mais ou menos fundadas no texto e na arqueologia. Não se pode insistir sobre o papel estratégico de tais procissões. Uma consideração mais atenta dos trechos sagrados insinua que o seu significado primordial é de outra ordem: é significado religioso, não militar. Com efeito, eis os termos com que, no fim da Escritura, o Apóstolo de Cristo se refere ao episódio:
“Foi pela fé que os muros de Jericó desmoronaram, depois de se lhes haver dado a volta durante sete dias”. (Hb 11, 30)
Esta breve frase estabelece um nexo entre a fé dos israelitas e a conquista de Jericó; foi aquela que de Deus obteve esta. Verdade é que entre a atitude de fé dos hebreus que assediaram Jericó e a conquista da cidade medearam os desfiles de sete dias. Tais cerimônias foram prescritas pelo Senhor, não, porém, como se Javé visasse ensinar aos seus fiéis um estratagema bélico, a manobra adequada….; foram inculcadas primariamente para que os filhos de Israel tivessem ocasião de exercer a sua fé; praticando aqueles artifícios (cujo valor militar é incerto e não importa muito no caso), os hebreus, antes do mais, professavam crer no Auxílio de Deus, que dispensa máquinas de guerra desde que Ele queira realizar algum desígnio. Depois de ter experimentado essa fé, o Senhor recompensou-a com retumbante vitória.
Firme este princípio básico para a interpretação do episódio, não nos seria lícito fechar os olhos a ulteriores considerações: é bem possível que, para entregar Jericó aos israelitas em prêmio de sua fé, o Senhor se tenha servido de causas segundas. Bons autores pensam que permitiu um terremoto em momento oportuno,26 à semelhança do que se verificou posteriormente numa batalha contra os filisteus.27 Não terá dispensado de pequenos combates o exército de Josué; a estes alude Js 24, 11. 28 O clamor proferido pelo povo israelita imediatamente antes de assaltarem a cidade parece não ser senão a terou-a ou o brado de ataque que marcava o início das batalhas de outrora.29 Nem se exclui a ação devastadora da sede na cidade cercada, pois a única fonte de abastecimento pode ter estado fora dos muros do reduto, como às vezes acontecia (cf. Jt 7, 6). Em suma, é de crer que o texto do livro de Josué não nos refere a história completa da tomada de Jericó, mas se restringe ao episódio que realçava a influência do fator “fé” na campanha bélica.
Quanto à arqueologia, as escavações levadas a efeito desde 1908 no local da antiga cidade fizeram ver que a muralha de Jericó construída após 1600 a.C. sofreu destruição; o seu lado oriental foi mesmo totalmente arrasado. Os arqueólogos discutem sobre a época precisa em que se deu o desastre, embora o assinalem geralmente ao intervalo que corre entre 1400 e 1200 a.C. (ora Josué tomou Jericó por volta de 1200 a.C.).
Em conclusão: as manobras dos hebreus em tomo de Jericó têm primariamente o significado de um testemunho da fé que Deus exigia de seu povo; a sua finalidade imediata era provocar um bem de ordem espiritual numa gente rude como Israel, ou seja, excitar uma sincera atitude religiosa perante o verdadeiro Deus. A resposta do Senhor ao seu povo consistiu certamente numa intervenção poderosa, portentosa, cujos pormenores não podemos descrever com exatidão, visto que o texto sagrado não fornece os elementos para isto.