Confesso
que, graças ao bom Deus, conheço pouco da obra deste inimigo da espiritualidade
e mofador dos mais elevados valores cristãos.
De seus livros, vieram-me às mãos,
quando era ainda jovem, os romances “Cândido” e “Os ouvidos do Conde de
Chesterfield”, traduzidos por Galeão Coutinho em uma só edição da Livraria
Martins, de São Paulo.
Não consegui descobrir, por detrás de
suas ironias, a “finesse” exigível dos grandes pensadores. E o vejo tão-somente
como exímio divulgador de ideias alheias.
Suas setas envenenadas vêm,
obviamente, embutidas na fala de seus personagens:
a) ora contra os judeus, cuja nação ele
considera “naçãozinha imitadora dos seus vizinhos”;
b) ora contra os jesuítas, cujas estórias
edificantes são “fábulas de missionários”.
Quanto à alma, pergunta um dos seus
personagens ao outro, cuja profissão era a de médico-cirurgião:
“Tem dissecado cérebros, tem visto
embriões e fetos; viu alguma vez algum sinal da alma?”
Ao que responde o médico: “Nunca, o
mínimo sinal.”
Esta estultice, que obviamente não
constitui uma ideia original do romancista, tem sido repetida por incrédulos
mestres de Anatomia, em nossas Escolas de Medicina, como se fosse possível
fisgar, com a ponta do bisturi, atributos espirituais do ser humano.
Sobre o “motivo” das ações humanas,
ensaia Voltaire uma discussão teatral. Entre os contendores figura um cômico
pastor que “não cessava de lamentar a perda de sua paróquia e de sua bem
amada”.
Este cômico ministro religioso, o
primeiro a falar, diz que o princípio de tudo é “a ambição e o amor”.
O segundo, que teria viajado por
todos os continentes, acusa o dinheiro como o móvel das ações humanas.
O
terceiro, o médico, aponta a “latrina” como sendo o fator mais importante:
“Sempre notei que todos os negócios
deste mundo dependem da opinião e da vontade de um personagem importante
qualquer, seja o rei, seja o primeiro ministro, seja o empregado mais
graduado.”
“Ora, essa opinião e essa vontade são
o efeito imediato da maneira como os espíritos animais se filtram no cérebro e
daí passam para a medula.”
“Esses espíritos dependem da
circulação do sangue, e o sangue depende da formação do quilo. O quilo se
elabora na rede mesentérica.”
“O mesentério está ligado aos
intestinos por filamentos muito delgados; os intestinos, queiram desculpar-me,
estão cheios de bosta.”
“Ora, apesar das três fortes túnicas
de que está revestido cada intestino, existem inúmeros pequenos orifícios,
porque na natureza todos os corpos são porosos; não há grão de areia, por menor
que seja, que não tenha quatrocentos ou quinhentos poros.”
“Que acontece, pois, com o homem que
sofre de prisão de ventre?”
A
título de conclusão, assegura o médico: “A latrina tem tanta importância, que
uma diarreia torna pusilânime um homem, a disenteria tira a coragem”.
Assevera VOLTAIRE que, se Deus é
“escravo de sua vontade, de sua sabedoria, das próprias leis que criou e da
necessidade de sua natureza”; e, portanto, “não pode modificar coisa alguma nos
acontecimentos do mundo”, para que cantar louvores e dirigir-lhe preces?
Mas o escritor vai mais longe.
Ao abordar o tema das doenças
venéreas, acrescenta que, se o homem foi feito à imagem de Deus, “é nos vasos
espermáticos dessa imagem que se alojam a dor, a infecção e a morte”.
Retirado
do livro: “Raízes Históricas e Filosóficas do Ateísmo Contemporâneo”. Lúcio
Flávio de Vasconcellos Naves. Ed.Cléofas.
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