A Santa Sé gasta anos para avaliar se o relato de um milagre
é fidedigno. Ocorre que qualquer milagre abre espaço tanto para a gratidão
fervorosa do beneficiado quanto para a desconfiança dos céticos. Na opinião dos
incrédulos, o que a ciência não explica hoje poderá ser esclarecido no futuro.
Para os crentes, os indícios de milagre são suficientes.
A
dúvida, porém, não se encaixa no primeiro milagre de Madre Paulina, que lhe
rendeu a beatificação em 1991. Eluiza Rosa de Souza acha que Madre Paulina a
livrou da morte. Em 1966, aos 23 anos, ela perdeu um filho no ventre. O feto
ficou retido no útero por vários meses e provocou intensa hemorragia ao ser
retirado, num hospital da cidade de Imbituba, Santa Catarina. A pressão
arterial de Eluiza chegou a zero. Os médicos a desenganaram. Os familiares e as
irmãzinhas da Imaculada Conceição, que trabalhavam no hospital, dirigiram
preces a Madre Paulina. A circulação voltou. “O que me salvou foi a medicina do
céu”, conta a devota, hoje com 59 anos. A cura foi considerada inexplicável por
médicos; o caso era gravíssimo. Hoje , os hospitais revertem a hemorragia com
medicamentos e transfusões. Eluiza não contava com esses recursos em Imbituba
nos anos 60.
Embora
o Vaticano recorra a peritos para atestar milagres, a definição segue como
questão essencialmente espiritual. A medicina e/ou outras ciências dá seu
parecer, mas quem decide se houve intervenção divina são os teólogos.
Pesquisadores e religiosos, hoje, convivem respeitosamente. Entendem que ambos
trabalham para atender as necessidades humanas. A ciência é a resposta à sede
de conhecimentos; a religião conforta a alma.
O professor Eduardo Rodrigues da Cruz, do
programa de história da ciência da PUC de São Paulo, é físico e teólogo. Garante
que não há incongruência em sua formação. “Às vezes visto a camisa de teólogo,
às vezes a de cientista”, brinca. Segundo Cruz, a teoria do big-bang, a
explosão primordial que teria originado o universo, é apenas uma hipótese.
Mesmo assim, não a julga incompatível com a idéia de Deus, porque pode ter
ocorrido depois da criação divina a partir do nada, defendida pelo cristianismo
e pelo judaísmo. “Existem especulações sobre a origem do universo mais absurdas
do que acreditar que uma divindade criou tudo”. Propõe uma noção de milagre
ligada a teoria das probabilidades. A ciência tradicional diria que é
impossível que um copo estilhaçado no chão volte à mesa intacto. Os
pesquisadores contemporâneos dizem que a probabilidade desse acontecimento é
baixíssima – mas existe. O mesmo ocorreria com as chances de uma pessoa
desenganada pelos médicos. A possibilidade de cura, embora reduzida, não é
zero. Deus cabe no raciocínio matemático. “O Criador se utiliza dessas
probabilidades para mostrar às pessoas que continua ao lado delas”, afirma
Cruz.
A descrição de milagres permeia todas as
religiões. Moisés salvou o povo judeu ao abrir uma passagem de terra no Mar
Vermelho. Maomé cegou adversários e fez brotar água e comida no deserto. Tais
eventos encarnam um símbolo poderoso: a força de Deus sobre as leis da natureza
e Seu rebanho. O catolicismo transformou esses feitos num pilar permanente de
fé. Cristo operava milagres e o cristianismo nasceu de um deles: a
ressurreição. As biografias dos santos católicos repetem, cada um a seu modo, a
trajetória de Jesus. Muitos enfrentaram martírios para defender a fé ou levaram
uma vida ascética. E muitos promoveram curas milagrosas. A sagração de santos e
a exaltação de seus milagres são percebidos pelos fiéis como um sinal continuo
da presença de Deus. Os fiéis são ávidos por milagres. “Diversas pesquisas
mostram que oito em dez americanos acreditam que Deus está presente e ainda
opera milagres”, diz o jornalista Kenneth Woodward, autor do Livro dos
Milagres, lançado em 2000 nos Estados Unidos.
Embora as
religiões exaltem a salvação e a vida após a morte, a maioria das pessoas busca
na fé as respostas para aflições cotidianas. No imaginário dos fiéis, a
definição de milagre é elástica: pode ser grande, pequeno, reconhecido por todos,
ou percebido apenas intimamente. Há milagres em toda parte, diz o Prof. Soubhi
Kahhale, ginecologista e obstetra da USP. “Acontecem todos os dias e não nos
damos conta”, diz ele. Kahhale nasceu cristão ortodoxo e participa das
celebrações católicas. “Quanto mais me aprofundo na medicina, mais me aproximo
de Deus”, diz. Ele acredita numa força superior que controla tudo e na
intermediação dos santos. “Acabo de fazer o parto de um bebê de 600 gramas que
passa bem e acho que isso é um milagre”.
A
avidez dos fiéis levou a Igreja a adotar uma postura cada vez mais cuidadosa em
relação aos milagres. Até o século XVIII, os santos eram consagrados pelo povo
e chancelados pelo papa. Os atuais critérios de classificação dos milagres
foram fixados pelo Papa Bento XV, que morreu em 1758. Eles devem ser
investigados no país de origem e por uma comissão internacional formada por
especialistas, nem todos católicos, que compõem a chamada Consulta Médica da
Congregação para a Causa dos Santos. A cura tem que ser instantânea, duradoura
e inexplicável pela medicina. Como esse conhecimento está em evolução, os
critérios vão se tornando cada vez mais rigorosos. Vitórias contra o câncer
normalmente são rechaçadas, pois se sabe hoje que o risco de metástase é
duradouro. Doenças que têm incidência elevada de remissão também estão fora.
Milagres que vencem o crivo têm força para desafiar as convicções dos
incrédulos. Em 1997, o Papa João Paulo II canonizou a Irmã Teresa Benedicta da
Cruz, nascida Edith Stein, filosofa alemã de origem judaica que se tornou
freira. Em 1942 foi identificada pelos nazistas e morta num campo de
concentração. A canonização foi criticada por lideres israelitas, que acusaram
o Vaticano de se apropriar de uma mártir judaica. Os protestos limitaram-se a Europa.
Nos
EUA, o que mobilizou foi o milagre atribuído à intercessão de Judith Stein, que
lhe rendeu a canonização. No dia 20 de março de 1987, Teresa Benedicta
McCarthy, uma menina americana de 3 anos, foi internada no Hospital Geral de
Massachussetts, vítima de um acidente doméstico. Ela havia ingerido uma
quantidade de Tylenol 16 vezes maior que a dose mortal. Foi desenganada pelos
médicos, mas se recuperou em poucos dias. Um testemunho insuspeito garante que
algo extraordinário ocorreu ali. O médico que atendeu Teresa foi o Dr. Ronald
Kleinman, professor de pediatria da Escola de Medicina de Harvard. Além das
credenciais de médico, Kleinman não tem vinculo com a Igreja Católica. É judeu,
o que aumenta a credibilidade de sua opinião.
Resumo de reportagem de
Época-nº 198- 04/03/02-sobre a canonização de Madre Paulina, primeira santa
brasileira.
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