Numa época em que o ateísmo militante matou quase
duas centenas de milhões de pessoas e criou os mais temíveis mecanismos de
repressão já conhecidos , as advertências de certos vigilantes da democracia
contra o perigo das inquisições religiosas soam tão comicamente
desproporcionais, que não se pode deixar de ver nelas um simples mecanismo de
fuga. Por meio desse artifício, o inimigo das religiões tenta salvar de um
confronto com a realidade o mais querido mito moderno: o mito de que a cultura
científico-materialista pode criar um mundo de liberdade e democracia.
Se as religiões, uma
vez perdido o seu impulso originário, podem cristalizar-se em burocracias
tirânicas e até homicidas, isso prova que a violência repressiva não está na
raiz e essência do fenômeno religioso, mas sim na sua lenta e progressiva
contaminação por elementos estranhos – políticos, sociais, culturais e
econômicos. A repressão religiosa só aparece quando decorridos muitos séculos da
revelação inicial, e vem junto com a proliferação das controvérsias teológicas
que assinalam a dissolução da unidade espiritual do povo crente.
Nos seus primeiros
tempos, as religiões em geral mostram um notável espírito de mansuetude e
tolerância. Os judeus do Antigo Testamento só partiram para as guerras depois de
suportar docemente toda sorte de ofensas. Os cristãos só começaram a reagir pela
força depois de três séculos de sofrimento resignado. Maomé ao entrar triunfante
em Medina deu anistia geral aos adversários que haviam tramado sua morte. As
manifestações de fanatismo e intolerância foram tardias nos três casos e
entremeadas de retornos a bondade originária.
As ideologias
modernas, ao contrário, nasceram bebendo sangue, com uma sede ilimitada que nem
se inibe na derrota, nem se aplaca na vitória. São homicidas desde o berço. Não
há uma só delas – nem o democratismo iluminista, nem o socialismo, nem o
nacionalismo, nem o anarquismo – que não tenha surgido como proposta explicita
de transformação violenta, que não tenha dado seus primeiros passos sobre os
cadáveres de seus adversários e que uma vez no poder, não tenha progredido
praticamente sem limites, no uso de meios cruéis para derrubar os obstáculos que
se apresentem no caminho de uma paz sempre adiada, de um paraíso de ordem e
justiça que vai se esfumando no horizonte, de século em século.
Mais ainda: desde o
inicio, essa violência, de escala milhares de vezes maior do que tudo quanto se
possa imputar a qualquer religião conhecida e a todas elas somadas, se volta no
essencial, contra povos e comunidades crentes. Contra os católicos na França, no
México e na Espanha. Contra os ortodoxos na Rússia e paises satélites. Contra os
judeus na Alemanha e paises sob ocupação alemã. Contra os budistas na China e no
Tibete. Total de vitimas: o equivalente a população do Brasil. E tudo isto em
nome de doutrinas puramente agnósticas ou atéias: o laicismo, a interpretação
materialista da história, a competição darwinista das raças. A história da
modernidade não é só a narrativa de um processo de ‘laicização’crescente –
tantas vezes assim denominado para dar a impressão de que tudo não passou de um
inofensivo debate acadêmico no qual o lado mais inteligente levou a melhor. A
história da modernidade não é isso: é a história da matança sistemática e
ininterrupta dos crentes pelos descrentes. Foi matando os homens de Deus e não
argumentando com eles, que a modernidade atéia pôde triunfar e hoje impor ao
mundo a mentira sórdida de que as religiões são um perigo para a democracia e a
paz.
Tão fundo essa
mentira penetrou na mente contemporânea, que mesmo homens que se imaginam mais
avessos às ideologias totalitárias, quando vão denunciá-las em público, não
falam delas senão no vocabulário que elas mesmas forjaram para caluniar as
religiões. Quando com pose de esclarecido e tolerante, o democrata moderno
expressa sua repulsa pelas tiranias do século XX referindo-se a elas com
expressões como “inquisição”, “intolerância rabínica” ou “fundamentalismo”, o
que ele faz é , em última análise, misturar
numa pasta de sombras a imagem das vitimas e a dos assassinos, insinuando que
estes só são verdadeiramente assassinos porque em algo se parecem com aquelas.
Nessa linha, o ateu não mata porque é ateu, porque é inimigo professo de Deus,
porque tem ódio aos crentes: mata porque se deixou contaminar de “espirito
inquisitorial”, de “fé irracional”, de “fanatismo puritano”. Mata porque ainda
carrega em si algum residuo das antigas religiões. Mata porque ainda não
alcançou a perfeição do puro materialismo cientifico. Quando o último rabino for
enforcado nas tripas do último bispo e enterrado sob os ossos do último aiatolá,
a violência terá desaparecido do mundo.
É assim que, no ato mesmo de confessar seus
crimes, a astúcia materialista acaba por imputá-los às suas vitimas.
Na verdade, só quem
não faz a menor idéia do que seja uma religião – ou quem fazendo uma idéia bem
clara, tenha motivos para obscurece-la – pode supor que haja uma conexão
intrinseca entre religião e fanatismo totalitário de um lado,e entre
materialismo e tolerância democrática de outro.
A aposta fanática que
o militante faz numa ideologia cientifica é, pela própria natureza das coisas ,
infinitamente maior que aquela que qualquer religião poderia admitir numa alma
de crente. Nenhum profeta, santo ou mistico jamais esteve tão persuadido de
conhecer as intensões divinas quanto os ilumunistas , marxistas e racistas
imaginavam ter penetrado as leis secretas da natureza e da história. (Uns
sabiam muito e se julgavam pouco sábios; outros pouco sabiam e achavam
que sabiam tudo). Em religião, as revelações vêm sempre numa linguagem
demasiado compacta, demasiado densa de subintenções simbólicas, para que seu
conteúdo doutrinal possa saltar aos olhos a primeira vista. O esclarecimento, a
explicação doutrinal leva séculos – e a margem de incerteza nas interpretações
tem de permanecer ampla pelo menos até que se perfilem, ao fim de um longo
trabalho, os pontos de controvérsia irredutíveis, que então sim, podem se
cristalizar em antagonismos políticos e inaugurar a era das inquisições. Com as
ideologias cientifico-politicas não há essa delonga: mal acabam de ser
formuladas, já podem conquistar a adesão consensual de massas de intelectuais e
militantes, fortalecidas, ademais pela convicção de que não agem por fé
irracional, mas por uma fatalidade natural ou histórica legitimada pela ciência.
Por isto as religiões quando velhas podem até se tornar assassinas. Mas as
ideologias materialistas já nascem matando e nunca param de matar.
Olavo de Carvalho, filósofo