Deus nos criou com o dom maravilhoso e desafiador que é a
liberdade. Ele se arrisca a encontrar inclusive respostas negativas ao seu
projeto de amor e felicidade para a humanidade. Seu contato com a humanidade,
expresso em toda a História da Salvação, inclui um elemento importante, o
chamado, apelo, a vocação. A aventura humana pede este confronto de duas
liberdades, que podem construir, ao longo dos anos, fecundo relacionamento,
cujos frutos contribuem para o crescimento do Reino de Deus, sem excluir as
possíveis crises de amadurecimento, já que somos respeitados nos passos a serem
dados.
Um homem de nome Amós, vindo do ambiente rural (Am 7,
12-15), cuja experiência é descrita pela Liturgia neste final de semana, é
convocado por Deus, para exercer a missão de profeta, com palavras provocadoras
e exigentes, em tempos de crise política e religiosa. Deus chama quem ele quer
e do jeito que quer, desenraizando, quando necessário, a pessoa do próprio
ambiente, concedendo-lhe palavras acertadas que suscitam mudança e conversão. A
resposta ao chamado poderia ser negativa, mas a hombridade do homem simples e
corajoso pede um compromisso corajoso. Não dá para voltar atrás!
Jesus chamou doze (Mc 6, 7- 13), setenta e dois, centenas e
milhares para o seguirem e serem enviados. Houve gente que disse não (Cf. Mc
10, 17-22), entre os que o seguiram houve deserções, traição, negação
vergonhosa, pecados! A todos ele faz propostas semelhantes e desproporcionais
às capacidades humanas: não levar nada para o caminho, despojamento total,
expulsar demônios, curar os enfermos, anunciar a chegada do Reino de Deus. Até
hoje é assim, nos diversos dons, ministérios e carismas que são concedidos a
todo o povo de Deus. Existe o chamado e as pessoas continuam respondendo, mesmo
em meio a tantas mudanças no mundo. E quem o segue deve acolher condições
exigentes: "Entrai pela porta estreita! Pois larga é a porta e espaçoso o
caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram! Como é estreita a
porta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos são os que o
encontram" (Mt 7, 13-14). O que acontece? Por que este
"incômodo" que é seguir Jesus continua a se realizar, malgrado toda
uma onda que aparentemente conduz a estradas diversas?
É claro que nosso ângulo de visão é fruto de nossa fé.
Estamos convencidos de algumas realidades fundamentais! Fomos feitos por Deus,
não somos obra do acaso, por ele somos amados e o mundo não é o espaço dominado
pela maldade, mas terra de Deus, pensada por ele para a nossa felicidade, tanto
que a Bíblia descreve poeticamente a Criação, falando de um Paraíso! Num mundo
de pessoas que apenas pensam em vestir-se bem, outras querem a ociosidade,
tantas rejeitam a verdade ou querem criticar todas as coisas, há gente que
prefere os valores do Paraíso e o preferem, como santos do porte de um São
Filipe Neri, sobre o qual é muito conhecido um filme chamado "Prefiro o
Paraíso". Renunciam a grandes carreiras, homenagens, sucesso a qualquer
custo. Agrada-lhes outra coisa, o Paraíso! É que o projeto de Deus contempla
valores diferentes dos que costumeiramente encontramos como a partilha, a
sensibilidade diante das situações dolorosas dos outros, a atenção, a coragem
para tomar iniciativas de serviço à sociedade, a superação da impureza e da
ganância. Trata-se de preferir o Paraíso, o jeito de Deus ver as coisas!
O Apóstolo São Paulo usa expressões que podem abrir os
horizontes de nossa compreensão da realidade humana e dos desígnios de Deus
para todos: "Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, para
sermos santos e imaculados diante dele, no amor. Conforme o desígnio
benevolente de sua vontade, ele nos predestinou à adoção como filhos, por obra
de Jesus Cristo, para o louvor de sua graça gloriosa, com que nos agraciou no
seu bem-amado" (Ef 1, 4-6). Nós fomos escolhidos, antes do mundo ser
criado, para sermos santos e imaculados, diante dele, no amor. Ninguém foi
feito para o egoísmo ou para o pecado. Optar pela maldade é possível, mas é
processo de autodestruição, e Deus não fez ninguém para ser infeliz!
Aqui tocamos num ponto delicado. Há um destino traçado, do
qual não podemos fugir? Será que não posso escolher jogar tudo para o alto,
considerando-me livre para fazer o que quiser? Só posso ser feliz em Deus? São
perguntas desafiadoras e incômodas! Só Deus é capaz de propor aos seres humanos
um caminho de felicidade e continuar a amá-los, se manipular sua liberdade,
mesmo se eventualmente voltarem as costas para ele. Só o Pai do Céu é capaz de
enviar seu Filho amado, que foi até o mais profundo da rejeição de Deus,
quando, em nome da humanidade arrasada, gritou na Cruz o abandono: "Quando
chegou o meio-dia, uma escuridão cobriu toda a terra até às três horas da
tarde. Às três da tarde, Jesus gritou com voz forte: “Eloí, Eloí, lemá sabactâni?
– que quer dizer “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste" (Mc 15,
33-34). Tendo descido por amor ao ponto mais baixo, Jesus Cristo nos abriu o
caminho da vida e da liberdade, visitando todas as situações humanas, para
preenchê-las apenas de amor.
Nesta “viagem”, com a qual conheceu tudo o que é humano,
concedeu capacidades às pessoas, chamou, convocou, atraiu e enviou: “A cada um
de nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo. Por isso, diz a
Escritura: “Subindo às alturas, levou cativo o cativeiro e distribuiu dons aos
seres humanos”. Que significa “subiu”, senão que ele desceu também às
profundezas da terra? Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os
céus, a fim de encher o universo” (Ef 4, 7-10). Para resgatar o escravo, fazendo-o
livre e fiel, ele se fez escravo, entregou-se até à morte, e morte de Cruz!
O caminho da liberdade passa pela entrega. Só se liberta
quem se doa, quem transforma sua vida em oferta a Deus e ao próximo! Quem se
guarda condena a si mesmo à esterilidade e à tristeza, e este não é o plano de
Deus! O dom da liberdade se efetiva quando as pessoas saem de si mesmas. Pode
acontecer que alguém até esteja preso, como ocorreu e ocorre com tantos homens
e mulheres que se sacrificam por Deus e pelo próximo, mas estas são pessoas
livres, porque são fiéis a Cristo. Acima das eventuais circunstâncias, “pela
fé, conquistaram reinos, exerceram a justiça, foram contemplados com promessas,
amordaçaram a boca dos leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio
da espada, recobraram saúde na doença, mostraram-se valentes na guerra,
repeliram os exércitos estrangeiros. Mulheres reencontraram os seus mortos pela
ressurreição. Outros foram torturados ou recusaram ser resgatados, para chegar
a uma ressurreição melhor. Outros ainda sofreram a provação dos escárnios,
experimentaram o açoite, as cadeias, as prisões, foram apedrejados, serrados ou
passados ao fio da espada, levaram vida errante, vestidos com pele de carneiro
ou pelos de cabra, oprimidos, atribulados, sofrendo privações. Eles, dos quais
o mundo não era digno” (Hb 11, 33- 38). Que Deus continue a chamar, em nosso
meio, pessoas desse quilate!
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL