Recentemente
apareceram notícias de pessoas sendo crucificadas! Em nosso tempo praças
ficaram cheias de gente pregada na cruz, outras degoladas, levas de homens,
mulheres e crianças, enfermos, anciãos, num roldão de intolerância impensável
em tempos que se consideram civilizados. É a cruz que comparece de novo!
Percorrendo
estradas, pelo Brasil afora, não é raro encontrar em algumas colinas a Cruz,
elevada e imponente, muitas vezes iluminada, outras enfeitadas com os símbolos
da paixão de Cristo, cravos, coroa, lençol ou lança. E a mesma Cruz é vista,
como sinal de fé, em locais marcados por acidentes, nos quais homens e mulheres
tiveram suas vidas ceifadas. É ainda a Cruz que comparece serena sobre as
sepulturas cristãs, como identificação do tipo de pessoa ali plantada, no
respeito ao corpo marcado pela graça do Batismo. Ela ainda é vista em salas de
aulas, repartições públicas, tribunais e em nossas casas, trabalhada pela arte
e pela devoção de gerações de cristãos, vista de diversas perspectivas. Muitos
a trazem como enfeite precioso, outros a escolhem de lenho despojado, para
declarar os rumos de suas opções de fé. O sinal da Santa Cruz, que nos livra
dos inimigos estará sempre presente, onde quer que esteja um homem ou mulher de
fé. E a Igreja celebra a Exaltação da Santa Cruz como uma grande festa, sabendo
que a sabedoria nela escondida e revelada continuará atual e poderosa.
Contam-se
histórias, inventadas com verdade e singeleza, como aquela da pessoa que
julgava pesada a própria cruz. Deixada na liberdade da escolha, foi procurar
num imaginado "depósito" de cruzes, a mais adequada às suas
condições. Depois de muito analisar, não se apercebeu a mesma cruz deixada à
porta, foi de novo abraçada e carregada. Outro personagem descobriu que a Cruz
considerada muito grande era justamente a medida de uma ponte necessária à
superação de um abismo. São formas simpáticas, criadas pelo imaginário popular,
com as quais o Evangelho da Cruz, tão antigo e novo e, mais ainda, necessário,
continua a ser anunciado nos púlpitos do cotidiano. Por mais que dela se
pretenda escapar, a Cruz comparecerá nas curvas da vida, e não há exceções.
No entanto, é bom
que se esclareça o sentido profundo e verdadeiro da Cruz. O sofrimento sozinho
não deve e nem pode ser procurado, num gosto mórbido e destruidor da vida
humana. Dificuldades, dores ou problemas têm a vocação de se transformarem em
Cruz, quando se acrescenta o único ingrediente com o qual a vida ganha sentido,
o amor. A cruz com a qual foram supliciadas tantas pessoas foi redimida e se
transformou em sinal e caminho de salvação por aquele que nela se imolou para a
salvação da humanidade. Só a entrega livre, a descida à condição de escravidão
e liberdade, no amor eterno, feita por quem não se apegou à sua igualdade com
Deus (Cf. Fl 2, 6-11), na morte de Cruz, dá sentido a tudo o que se faz,
inclusive o sofrimento e a dor. Aí se joga com a liberdade humana! Podemos
ficar apenas com problemas, dores, angústias, enfermidades ou outras expressões
com as quais qualificamos os desafios da vida humana, ou aproveitamos a graça
de dar-lhes um nome sagrado, Cruz, unindo-nos a Cristo e escolhendo-o como
Senhor e Salvador, para ter a vida eterna, não só depois de sermos apresentados
diante da face de Deus, no limiar da eternidade, mas agora, no momento presente
em que o Senhor nos quer realizados e felizes.
Vale a pena fazer
um exercício, olhando para a Cruz de Cristo (Cf. Jo 3, 13-17). A Cruz aponta
para o alto, para a grandeza do eterno. Mirar o relacionamento com Deus é
resposta humana àquele que criou, por desígnio admirável, a maravilhosa
aventura de estar nesta terra. Buscar as coisas do alto (Cf. Cl 3, 1-2) é
atitude digna dos filhos de Deus. E pode iluminar o cotidiano de forma
surpreendente. Pensa no que é melhor, no mais perfeito, naquilo que é mais
santo, deixar-se envolver pela beleza com que Deus pensou a humanidade, ter
sonhos de paraíso, sim! E a Cruz tem uma outra haste, horizontal, braços que se
abrem e acolhem no amor tudo o que é humano. É a escolha do relacionamento
amigo e verdadeiro com as outras pessoas, com a sensibilidade de quem olha ao
redor e não deixar escapar qualquer possibilidade para amar e fazer o bem.
As duas hastes da
Cruz se "cruzam" no coração humano! É lá dentro, no íntimo das
escolhas inteligentes e livres simbolizadas justamente pelo coração é que se
encontra a possibilidade de transformar dor, sofrimento, problemas ou
incógnitas em caminho de salvação. Também as alegrias serão transformadas em
Cruz e ganharão sentido, quando estes dois movimentos se fizerem presentes,
olhar para o alto e abrir os braços no amor ao próximo. Sim, pois também
gargalhadas dadas, ou outras expressões efusivas dos sentimentos humanos, sem o
amor se esvaziam e esvaziam a vida. Só em Cristo e em seu mistério a história
pessoal e a da humanidade encontram rumo e sentido.
Ainda a verdade da
Cruz! É que ela é uma face do mistério, que tem o outro lado, a Ressurreição.
Quando se abraça a vida e todos os seus desafios com amor, a força do Cristo,
que venceu a morte e a dor, resplandece gloriosa. O convite à fé cristã faz de
nós homens e mulheres pascais, capazes de passar continuamente da morte à vida.
O segredo estará sempre na tomada de consciência, momento por momento, das
infinitas possibilidades criadas pelo amor de Deus. Uma dificuldade na saúde
será aproveitada para oferecer tudo o que se vive, sem deixar de lado os
necessários cuidados, com os meios oferecidos pela ciência de nosso tempo. Uma
crise familiar ressoará no coração como apelo a sair de si mesmo, para amar e
servir com maior dedicação. As muitas situações sociais e econômicas, do
emprego à política ou outros problemas, tudo haverá de ser enfrentado com maior
serenidade, passando continuamente da morte à vida. Até as crises de fé poderão
ser enfrentadas com paz pelas pessoas que começam a sair de si, para amar e
servir ao próximo, entregando-se e confiando na força que brota da Cruz de
Cristo, com a qual a luz comparece de novo nos caminhos da existência.
Dom Alberto Taveira Corrêa - Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL
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