Que diz a Igreja sobre a sua
existência? A julgar pela atitude da mídia e de certas correntes filosóficas e
teológicas contemporâneas, "também o diabo está (ou parece) morto".
Contudo, não é esta a posição do Papa Paulo VI ou João Paulo II, do Catecismo
da Igreja Católica. Se não, vejamos: O último pedido do Pai Nosso "Mas
livrai-nos do mal" faz parte da oração sacerdotal de Jesus (Jo 17,15): "Não
te peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno". O Catecismo
da Igreja Católica (nº2850) diz que o "nós" do Pai Nosso lembra a
solidariedade para o bem e para o mal existentes entre os filhos do mesmo Pai.
O Papa Paulo VI, na audiência pública de 15 de novembro de 1972, esclarece
sobre sinais da presença da ação diabólica. Embora às vezes pareçam tornar-se
evidentes, é necessário ter muito cuidado no discernimento. Acrescenta ele:
"Podemos admitir a sua ação sinistra onde a negação de Deus se torna
radical, sutil ou absurda; onde o engano se revela hipócrita, contra a
evidência da verdade; onde o amor é anulado por um egoísmo frio e cruel; o nome
de Cristo é empregado com ódio consciente e rebelde; onde o espírito do
Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se manifesta como a
última palavra etc".
A afirmação da existência de espíritos decaídos, demônios, Satanás só tem
sentido em um contexto mais amplo. A presença de anjos e demônios jamais será
aceita à margem da fé cristã. A oposição a essa crença tradicional da Igreja
surge, com certo tipo da História da Religião, dentro de um ambiente
racionalista e iluminista. A argumentação daí resultante é alimentada pelas
doutrinas propagadas por povos vizinhos aos judeus. Os relatos do Antigo
Testamento, segundo eles, não trazem uma revelação, mas simplesmente reproduzem
mitos das culturas pagãs. Nessa linha de pensamento, o conhecido exegeta
protestante, Rudolf Bultmann em sua obra "Kerygma e Mythos",
sentencia: "Já não é possível usar luz elétrica e rádio (...) e ao mesmo
tempo acreditar no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento".
Interessante observar que são exatamente teólogos e pensadores protestantes de
renome, como Karl Barth, que tem outra posição "por causa da tradição
bíblica e por causa do seu valor na piedade do povo cristão", o tema dos
anjos não pode ser preterido pela teologia. Contudo, isso não impede que alguns
teólogos católicos continuem numa profunda reticência, temerosos talvez, de
serem taxados de "tradicionalistas" caso tratem, dentro da nossa
crença, o tema de anjos e demônios.
Ao falar em Satanás é importante evitar dois erros: o de absolutizar o maligno,
como se fosse uma terrível ameaça, em cada momento, a cada pessoa mesmo reta,
verdadeira, humilde e fiel. O demônio pode influenciar através das faculdades
mentais, e das tendências da natureza. Ele, contudo, não tem poder sobre o
íntimo da pessoa, pois sua liberdade, sua consciência pertencem diretamente a
Deus. Uma pessoa generosa, que procura guardar a retidão e pureza de seu modo
de agir, e mesmo a criança que reza com amor e confiança é mais forte do que
Satanás. De outro lado, há o erro do racionalismo, supondo não existir aquilo
que não podemos ver e experimentar com nossos sentidos. Nesse caso está o
Demônio.
O Novo Testamento fala freqüentemente no Diabo ou Satanás e em demônios. E
mostra seu lugar na história da salvação, tanto no evento central da vida de
Jesus Cristo, como na Igreja. O anjo decaído não pode ver Deus em Jesus; só
pode constatar com pavor e horror que este "profeta", superior a
todos os outros, é o perigo definitivo para as aspirações do inferno. Jesus é
apresentado como Aquele que venceu Satanás. O maligno derrotado consegue ainda
atrapalhar e seduzir. O Novo Testamento não manifesta interesse especulativo
algum em descrever dramaticamente o universo dos demônios, como o faziam certos
livros apócrifos. Não existe uma "demonologia". O Novo Testamento
tem, entretanto, um forte interesse em demonstrar que Satanás e seus espíritos
subalternos se apresentam no mundo como adversários da salvação, de Jesus e de
seus fiéis. Seu nome é "Diabo e Satanás" (Mt 4,1), "inimigo e
tentador", "Maligno" (Mt 13,19; Ef 6,16), "príncipe do
mundo" (Jo 12,31), "acusador" (Ap 12,10), "dragão",
"serpente" (Ap 12), "chefe dos demônios" (Mc 3,22) e assim
por diante.
Jesus não é um exorcista, mas o iniciador do Reino do Pai e do seu poder. Ele é
a imagem de Deus. A luta contra Satanás e a vitória definitiva sobre ele, é
parte constitutiva deste anúncio. Cristo, ele mesmo interpreta sua presença
assim: "O príncipe deste mundo está sendo jogado fora" (Jo 12,31). É
claro que nesses acontecimentos existem também elementos de doença.
O Magistério da Igreja procurou sempre manter um equilíbrio entre tendências de
absolutizar o Maligno e, hoje, de considerá-lo insignificante. O Concílio
Vaticano II não tratou o assunto de modo explícito; somente citou-o de passagem
dizendo que em Cristo "Deus nos reconciliou consigo e entre nós,
arrancando-nos da servidão do diabo e do pecado" ("Gaudium et
Spes" 22.3; 2.2); e o maligno continua nos tentando ("Lumen
Gentium" 16; 48,4; "Ad Gentes" 9).
Importa observar que os demônios não são apenas um poder anônimo, impessoal.
Mas são espíritos criados, pessoas. Por isso, e só por isso, o Concílio pode
dizer deles: "Segundo sua natureza, criados por Deus como bons, mas por si
próprios se tornaram maus". Na doutrina sobre o demônio, a Igreja sublinha
de um lado a infinita bondade de Deus Criador. E, de outro lado, mostra a grandeza
da liberdade da criatura que sendo imagem de Deus, é exatamente por esse
motivo, submetida a provas e tentações. É insistente a palavra de Jesus a todos
nós: "Vigiai, porque não conheceis nem o dia nem a hora" (Mt 25,13;
13,35. 37).
Em conclusão, devem se erradicar dois comportamentos errôneos: o que faz do
diabo um mito e aquele outro que o vê em toda parte.
Dom Eugênio de Araújo
Sales
Bispo Emérito do Rio
de Janeiro