Na Idade Média, a Inquisição não atuou em toda a Europa. Sua
ação limitou-se mais à França, Itália, Sacro Império Romano (Alemanha, Áustria,
Boêmia) e Aragão. No final do século XV, o rei Fernando II de Aragão (que havia
unido seu reino aos de Castela e Leão mediante o matrimônio com a rainha
castelhana Isabel I) conseguiu do papa Sixto IV a instituição de um Tribunal
inquisitorial no restante da Espanha. Este era chefiado por um
inquisidor-geral, nomeado geralmente pelo rei (lembrando que a Inquisição papal
tinha seu próprio inquisidor-mor, nomeado pelo papa). Em Portugal, no século
XVI, o rei D. João III também conseguiu semelhante instituição. Esses dois
tribunais, mais tarde, acabaram se transformando em instrumentos de
favorecimento do absolutismo de seus monarcas. O absolutismo monárquico
concebia uma unidade do reino identificada com a unidade religiosa: assim, os
monarcas ibéricos buscaram expulsar ou converter à força a população judaica e
muçulmana de seus reinos. Batizados à força ou por pressão, estes indivíduos
passavam a integrar juridicamente a Igreja, entrando, portanto, na alçada
inquisitorial. Isto gerou uma grande perseguição – especialmente aos judeus –
nos reinos ibéricos e em parte de suas colônias. Procedimentos semelhantes eram
tomados por reinos, príncipes e autoridades citadinas das diferentes vertentes
da Reforma protestante. É nesse sentido que alguns autores falam em “Inquisição
protestante”, embora devamos atentar ao fato de que as configurações jurídicas
e institucionais desses casos eram distintas das inquisições católicas.
Com o Concílio de Trento, em fins do século XVI, o papado
reorganizou a Inquisição papal, chamando-a de Tribunal do Santo Ofício. Mesmo
após o abandono dos poderes seculares na ação inquisitorial – e a abolição das
inquisições em Portugal e Espanha no século XIX -, o Santo Ofício continuou
trabalhando nas questões doutrinais da Igreja, estabelecendo as sanções e penas
espirituais, não mais como um tribunal eclesiástico, mas como um dicastério da
Cúria Romana. O papa Paulo VI renomeou esse dicastério como Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé. Tendo se transformado na Idade Moderna em instrumento
político, a Inquisição perdia a razão de ser com o desaparecimento dos
movimentos heréticos conturbados do período feudal e com a estagnação do
elemento cruento das contendas entre católicos e protestantes depois do século
XVIII.
É possível tecermos um juízo moral sobre os acontecimentos
envolvendo a Inquisição? Penso que sim, guardadas as devidas proporções
contextuais. Se, por um lado, é compreensível que a heresia fosse encarada como
problema de ordem pública no medievo devido ao caráter violento de muitos
movimentos heréticos e que os inquisidores se vissem como defensores de seu
rebanho, por outro lado devemos admitir que, em muitos casos, os envolvidos nos
processos inquisitoriais agiram de forma contrária aos princípios cristãos,
desviando o processo para algo que, na prática, tornava-se tentativa de
conversão forçada. O equilíbrio entre preservação da doutrina e disciplina
eclesiástica e a tolerância no convívio social com a dissidência religiosa era
difícil de mensurar em tempos nos quais questões religiosas e políticas se
misturavam não só na esfera dos princípios, mas também em níveis
institucionais.
Olhar jurídico
Para as concepções atuais de Direito e as sensibilidades do
homem moderno, soam estranhos os métodos e penalidades da Inquisição. Para os
medievais, contudo, os tribunais eclesiásticos eram muitas vezes vistos como
mais brandos que os tribunais seculares – que impunham penas mais pesadas. Um
caso curioso mencionado por João Bernardino Gonzaga em seu estudo
jurídico-histórico sobre a Inquisição é o de dois ladrões que haviam tonsurado
os cabelos (tonsura é o corte de cabelo que os monges e frades utilizam como
sinal de sua consagração) para que, ao serem confundidos com membros do clero,
fossem enviados para um tribunal da Igreja, de modo a escaparem do julgamento
mais severo do tribunal secular. Exemplos dessa “brandura” podem ser os tipos
de prisão utilizados pelos eclesiásticos (celas individuais inspiradas nos
mosteiros, em contraposição às masmorras dos castelos onde ficavam os presos de
alçada secular), as restrições às práticas de tortura, o uso de penitências em
vez de punições físicas etc.
Naturalmente, todas essas “branduras” também soam estranhas
na atualidade, já que não só as atribuições das leis e punições mudaram, como
ainda as ideias acerca das proporções entre penas e delitos. Numa época em que
a falsificação de moeda era punida com a morte, não era de estranhar que a
heresia, vista como falsificação das verdades sobre Deus, fosse punida de
maneira semelhante. Atualmente, torna-se cada vez mais aceita a ideia das penas
físicas como último recurso, de forma que é impossível entendermos o contexto
medieval e pré-iluminista com as noções do Direito moderno.
O olhar da Igreja católica
Em uma das celebrações litúrgicas do Jubileu do Ano Santo de
2000, no dia 12 de março, o papa João Paulo II realizou um ato histórico que
marcou o seu pontificado: o Sumo Pontífice, em nome de toda a Igreja, pediu
perdão pelos pecados cometidos pelos filhos da Igreja no anúncio do Evangelho.
Esse discurso foi, já na época, bastante distorcido e poucos conhecem a
profundidade daquelas palavras e o contexto em que ele está inserido.
Um dos objetivos do simpósio organizado no Vaticano para
estudar a Inquisição, na ótica do papa, era o de amadurecer a consciência das
autoridades da Igreja para o pedido de perdão feito no ano 2000. A questão era
a busca de um juízo fundamentado na objetividade histórica: admitindo as falhas
dos membros da Igreja, mas separando os fatos das propagandas ideológicas.
No mesmo ano de 2000, a Comissão Teológica Internacional
elaborou um documento chamado “Memória e Reconciliação: a Igreja e as culpas do
passado”, que apresenta um estudo teológico da relação entre os pecados
cometidos pelos católicos e a Igreja ao longo da História. No documento, a
Igreja reconhece que muitos de seus membros ao longo da História recorreram à
métodos e posturas contrários aos princípios cristãos, embora ressalte que o
pecado sempre acarreta uma responsabilidade pessoal daquele que o cometeu e que
a Igreja pede perdão em nome de seus filhos por essas imposturas, exortando
seus fiéis à contínua penitência e purificação de suas faltas.
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São
Paulo: Saraiva, 1993. Um resumo histórico da Inquisição, sob o ponto de vista
da História do Direito.
AQUINO, Felipe. Para entender a Inquisição. Lorena: Cléofas,
2010. De linguagem mais simples, o livro apresenta um resumo da Inquisição,
reportando-se aos estudos do Simpósio realizado no Vaticano em 1998.
FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva,
2005. O livro apresenta a história e a doutrina dos principais movimentos
heréticos da Europa entre os séculos XI e XIV.
Texto de Rafael de Mesquita Diehl, professor e historiador
formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando pela mesma
universidade. Publicado pelo site Revista Vila Nova.
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