quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Inquisição: uma breve história -conclusão


Na Idade Média, a Inquisição não atuou em toda a Europa. Sua ação limitou-se mais à França, Itália, Sacro Império Romano (Alemanha, Áustria, Boêmia) e Aragão. No final do século XV, o rei Fernando II de Aragão (que havia unido seu reino aos de Castela e Leão mediante o matrimônio com a rainha castelhana Isabel I) conseguiu do papa Sixto IV a instituição de um Tribunal inquisitorial no restante da Espanha. Este era chefiado por um inquisidor-geral, nomeado geralmente pelo rei (lembrando que a Inquisição papal tinha seu próprio inquisidor-mor, nomeado pelo papa). Em Portugal, no século XVI, o rei D. João III também conseguiu semelhante instituição. Esses dois tribunais, mais tarde, acabaram se transformando em instrumentos de favorecimento do absolutismo de seus monarcas. O absolutismo monárquico concebia uma unidade do reino identificada com a unidade religiosa: assim, os monarcas ibéricos buscaram expulsar ou converter à força a população judaica e muçulmana de seus reinos. Batizados à força ou por pressão, estes indivíduos passavam a integrar juridicamente a Igreja, entrando, portanto, na alçada inquisitorial. Isto gerou uma grande perseguição – especialmente aos judeus – nos reinos ibéricos e em parte de suas colônias. Procedimentos semelhantes eram tomados por reinos, príncipes e autoridades citadinas das diferentes vertentes da Reforma protestante. É nesse sentido que alguns autores falam em “Inquisição protestante”, embora devamos atentar ao fato de que as configurações jurídicas e institucionais desses casos eram distintas das inquisições católicas.
Com o Concílio de Trento, em fins do século XVI, o papado reorganizou a Inquisição papal, chamando-a de Tribunal do Santo Ofício. Mesmo após o abandono dos poderes seculares na ação inquisitorial – e a abolição das inquisições em Portugal e Espanha no século XIX -, o Santo Ofício continuou trabalhando nas questões doutrinais da Igreja, estabelecendo as sanções e penas espirituais, não mais como um tribunal eclesiástico, mas como um dicastério da Cúria Romana. O papa Paulo VI renomeou esse dicastério como Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Tendo se transformado na Idade Moderna em instrumento político, a Inquisição perdia a razão de ser com o desaparecimento dos movimentos heréticos conturbados do período feudal e com a estagnação do elemento cruento das contendas entre católicos e protestantes depois do século XVIII.
É possível tecermos um juízo moral sobre os acontecimentos envolvendo a Inquisição? Penso que sim, guardadas as devidas proporções contextuais. Se, por um lado, é compreensível que a heresia fosse encarada como problema de ordem pública no medievo devido ao caráter violento de muitos movimentos heréticos e que os inquisidores se vissem como defensores de seu rebanho, por outro lado devemos admitir que, em muitos casos, os envolvidos nos processos inquisitoriais agiram de forma contrária aos princípios cristãos, desviando o processo para algo que, na prática, tornava-se tentativa de conversão forçada. O equilíbrio entre preservação da doutrina e disciplina eclesiástica e a tolerância no convívio social com a dissidência religiosa era difícil de mensurar em tempos nos quais questões religiosas e políticas se misturavam não só na esfera dos princípios, mas também em níveis institucionais.
Olhar jurídico
Para as concepções atuais de Direito e as sensibilidades do homem moderno, soam estranhos os métodos e penalidades da Inquisição. Para os medievais, contudo, os tribunais eclesiásticos eram muitas vezes vistos como mais brandos que os tribunais seculares – que impunham penas mais pesadas. Um caso curioso mencionado por João Bernardino Gonzaga em seu estudo jurídico-histórico sobre a Inquisição é o de dois ladrões que haviam tonsurado os cabelos (tonsura é o corte de cabelo que os monges e frades utilizam como sinal de sua consagração) para que, ao serem confundidos com membros do clero, fossem enviados para um tribunal da Igreja, de modo a escaparem do julgamento mais severo do tribunal secular. Exemplos dessa “brandura” podem ser os tipos de prisão utilizados pelos eclesiásticos (celas individuais inspiradas nos mosteiros, em contraposição às masmorras dos castelos onde ficavam os presos de alçada secular), as restrições às práticas de tortura, o uso de penitências em vez de punições físicas etc.
Naturalmente, todas essas “branduras” também soam estranhas na atualidade, já que não só as atribuições das leis e punições mudaram, como ainda as ideias acerca das proporções entre penas e delitos. Numa época em que a falsificação de moeda era punida com a morte, não era de estranhar que a heresia, vista como falsificação das verdades sobre Deus, fosse punida de maneira semelhante. Atualmente, torna-se cada vez mais aceita a ideia das penas físicas como último recurso, de forma que é impossível entendermos o contexto medieval e pré-iluminista com as noções do Direito moderno.
O olhar da Igreja católica
Em uma das celebrações litúrgicas do Jubileu do Ano Santo de 2000, no dia 12 de março, o papa João Paulo II realizou um ato histórico que marcou o seu pontificado: o Sumo Pontífice, em nome de toda a Igreja, pediu perdão pelos pecados cometidos pelos filhos da Igreja no anúncio do Evangelho. Esse discurso foi, já na época, bastante distorcido e poucos conhecem a profundidade daquelas palavras e o contexto em que ele está inserido.
Um dos objetivos do simpósio organizado no Vaticano para estudar a Inquisição, na ótica do papa, era o de amadurecer a consciência das autoridades da Igreja para o pedido de perdão feito no ano 2000. A questão era a busca de um juízo fundamentado na objetividade histórica: admitindo as falhas dos membros da Igreja, mas separando os fatos das propagandas ideológicas.
No mesmo ano de 2000, a Comissão Teológica Internacional elaborou um documento chamado “Memória e Reconciliação: a Igreja e as culpas do passado”, que apresenta um estudo teológico da relação entre os pecados cometidos pelos católicos e a Igreja ao longo da História. No documento, a Igreja reconhece que muitos de seus membros ao longo da História recorreram à métodos e posturas contrários aos princípios cristãos, embora ressalte que o pecado sempre acarreta uma responsabilidade pessoal daquele que o cometeu e que a Igreja pede perdão em nome de seus filhos por essas imposturas, exortando seus fiéis à contínua penitência e purificação de suas faltas.

GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993. Um resumo histórico da Inquisição, sob o ponto de vista da História do Direito.
AQUINO, Felipe. Para entender a Inquisição. Lorena: Cléofas, 2010. De linguagem mais simples, o livro apresenta um resumo da Inquisição, reportando-se aos estudos do Simpósio realizado no Vaticano em 1998.
FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 2005. O livro apresenta a história e a doutrina dos principais movimentos heréticos da Europa entre os séculos XI e XIV.

Texto de Rafael de Mesquita Diehl, professor e historiador formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando pela mesma universidade. Publicado pelo site Revista Vila Nova.


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